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No dia 31 de março de 2021 foi sancionada a lei 14.132/21, que incluiu o artigo 147-A no Código Penal, criminalizando a conduta de perseguição (stalking em inglês). A nova lei, que entrou em vigor em 1º de abril de 2021, após a sua publicação no Diário Oficial da União, revogou a contravenção penal de perturbação à tranquilidade, prevista no artigo 65 do Decreto-Lei 3.688/41, bastante utilizado, até então, para punir casos de perseguição no País.

A palavra inglesa stalking pode ser traduzida como “perseguição” ou “ficar à espreita”, segundo a definição estabelecida por Castro e Sydow (2017, p. 53) “trata-se de curso de conduta de importunação, caracterizado pela insistência, impertinência e habitualidade, desenvolvido por qualquer meio de contato, vigilância, perseguição ou assédio.

O comportamento persecutório só se tornou crime, pela primeira vez no mundo, em 1933, na Dinamarca, e, somente a partir de 1990, o fenômeno passou a receber atenção nos Estados Unidos, devido ao trágico incidente que resultou na morte da atriz americana Rebeca Schaeffer, perpetrada por um fã perseguidor (GOMES, 2016, p. 14). Contudo, a prática não está meramente associada ao relacionamento de fãs com seus ídolos; pelo contrário, corriqueiramente configura-se no seio de relações íntimas de afeto. A propósito, o perseguidor íntimo da vítima, nas lições de Castro e Sydow (2017, p. 99), é o mais perigoso, pois a conhece com propriedade, sabe os lugares que frequenta, as pessoas com quem se relaciona, seus hábitos e suas preferências.

Atualmente, todos os 50 estados americanos criminalizam a prática de stalking, e diversos países, assim como o Brasil, têm adotado a mesma postura, a exemplo de Portugal, que tipificou a conduta como crime em 2015, incluindo no seu Código Penal o artigo 154-A (GOMES, 2016, p. 21).

O novo delito de perseguição traz a seguinte redação:

Art. 147-A. Perseguir alguém, reiteradamente e por qualquer meio, ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica, restringindo-lhe a capacidade de locomoção ou, de qualquer forma, invadindo ou perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade.

Pena – reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.

§ 1º A pena é aumentada de metade se o crime é cometido:

I – contra criança, adolescente ou idoso;

II – contra mulher por razões da condição de sexo feminino, nos termos do § 2º-A do art. 121 deste Código;

III – mediante concurso de 2 (duas) ou mais pessoas ou com o emprego de arma.

§ 2º As penas deste artigo são aplicáveis sem prejuízo das correspondentes à violência.

§ 3º Somente se procede mediante representação.

Diante da análise do tipo penal, baseando-se na classificação de Castro e Sydow (2017, p. 153-156), é possível apontar características do novo ilícito. Trata-se de crime habitual, em razão da exigência de atos reiterados para consumação. Significa dizer que uma conduta isolada do agente não é capaz de configurar o crime, exigindo-se, para caracterização do tipo, processo de concatenação de condutas e seu agrupamento. Justamente por isso, acredita-se não ser possível à tentativa, face à necessidade de mais de um ato para configuração.

O delito em questão pode ser cometido por qualquer meio, ou seja, o sujeito ativo pode cometer o crime utilizando-se do meio físico ou virtual e ainda mesclar os dois tipos. Ilustrando, poderia o “stalker”, agente do crime em análise, enviar cartas ou mensagens eletrônicas, aparecer em ambientes que a vítima frequenta, etc. Desta forma, o legislador preocupou-se em abranger em um único tipo penal a perseguição virtual, conhecida como “cyberstalking”, que é caracterizado pelo uso da tecnologia para perseguir alguém (CRESPO, 2015, on-line).

Quanto à conduta, trata-se de delito comissivo, isto é, sempre haverá o movimento positivo do agressor – mesmo que não revele sua identidade -, praticando atos direta ou indiretamente, a fim de chamar a atenção da vítima.

Em relação à forma de consumação, conclui-se que seria vinculada, pois o próprio tipo penal prevê as hipóteses: ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica, restringindo-lhe a capacidade de locomoção ou, de qualquer forma, invadindo ou perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade.

Trata-se de delito comum, podendo ser perpetrado tanto por homens como mulheres. Além disso, pode ser classificado como um delito unissubjetivo ou de concurso eventual, para o qual a legislação prevê causa de aumento de pena em metade, se porventura houver o concurso de agentes.

Nas situações em que a perseguição é cometida a fim de viabilizar a prática de crimes mais graves, como por exemplo, estupro, feminicídio ou homicídio, entende-se que, se for comprovado que o sujeito ativo se servira da perseguição como meio de execução do delito mais grave, este haverá de absorver o delito de perseguição, com base no princípio da subsidiariedade.

O artigo 147-A do Código Penal é um crime de ação penal pública condicionada à representação do ofendido, ou seja, conforme o artigo 5º, §4º, do Código de Processo Penal, o inquérito, nos crimes em que a ação pública depender de representação, não poderá ser iniciado sem a autorização formal da vítima para que o Estado prossiga da persecução penal. Contudo, o ofendido ou seu representante legal, decairá no direito de representação, se não o exercer dentro do prazo de seis meses, contado do dia em que vier, a saber, quem é o autor do crime, nos termos do artigo 38 do Código de Processo Penal.

Não é mera coincidência que o novo crime tenha se situado, topograficamente, no artigo 147-A do Código Penal. São nítidas algumas semelhanças com o delito de ameaça. Dentre elas, a que se acredita ser necessária para configuração do tipo é o temor da vítima em relação aos atos persecutórios. Compreende-se que, caso a vítima não se sinta atemorizada, não se configura o crime, pois não restou caracterizado violação ao bem jurídico tutelado, que, nesse caso, é a liberdade psíquica, tal como ocorre com o crime de ameaça.

Quanto à competência, uma vez que a pena máxima não ultrapassa dois anos de detenção, a ação penal estará sujeita ao rito dos Juizados Especiais Criminais, ocorrendo mediante procedimento sumaríssimo com os ditames da lei 9.099/95. Entretanto, caso o delito seja praticado contra criança ou adolescente, idoso ou mulher por razões da condição de sexo feminino, ou mediante concurso de agentes de 2 (duas) ou mais pessoas ou com emprego de arma, incidirá a causa de aumento de metade da pena, caso em que o procedimento será o sumário, com base no artigo 394, II, do Código de Processo Penal.

Nas hipóteses de causa de aumento, discute-se o cabimento de acordo de não persecução penal, entendendo-se ser cabível somente em casos de perseguição que ocorram sem violência ou ameaça à vítima, nos termos do artigo 28-A do Código de Processo Penal. Vale ressaltar que, em caso de violência doméstica e familiar contra a mulher, os trâmites processuais se operam pelos consectários da lei 11.340/06, e ainda, conforme a Súmula 536 do STJ, a suspensão condicional do processo e a transação penal não se aplicam aos delitos sujeitos ao rito da Lei Maria da Penha.

Os autores Mario Luiz Ramidoffe e Cesare Triberti (2017, p. 33) mencionam que, diante dos estudos sobre a temática de stalking, emerge um dado constante em relação ao gênero preponderante nas vítimas. A maioria dos casos de violência com base em stalking é perpetrada por homens contra mulheres, e um número significativo desses episódios termina com um crime violento. Neste diapasão, em relação ao perseguidor que teve um relacionamento afetivo com a vítima, Jorge Trindade (2012, p. 247) observa que esse tipo de perseguidor apresenta maior gravidade e risco em cometer delitos graves, porque a relação pré-existente entre agressor e vítima a deixa mais vulnerável, devido ao conhecimento de seus hábitos, de suas dificuldades e limitações.

Embora o Brasil ainda não tenha dados estatísticos sobre as vítimas de perseguição, a título de exemplo da relação entre a violência de gênero e a prática, a Associação Portuguesa de Apoio a Vítima constatou que, em Portugal, 32% das vítimas relataram que seus perseguidores são ex-parceiros (APAV, 2014, on-line). Desta forma, reconhece-se que é necessário um olhar mais profundo em cada caso de perseguição, visto que haverá episódios em que será necessário priorizar atenção e proteção à vítima, considerando a gravidade das ações do algoz e o contexto da relação, que pode se tratar de um grave caso de violência doméstica e familiar contra a mulher.

Em síntese, acredita-se que o novo crime de perseguição surge no sistema normativo brasileiro para suprir a insegurança jurídica que havia com a utilização da contravenção penal de perturbação à tranquilidade para punir atos persecutórios (revogada pela lei 14.132/21). Visto que, a mencionada contravenção penal podia ser utilizada em diversas situações contrárias à perseguição, além disso, não se exigia habitualidade para configuração, o que deve ocorrer em casos de stalking. Além disso, o novo ilícito previsto no artigo 147-A do Código Penal surge como mais um mecanismo de proteção para vítimas de violência doméstica e familiar contra a mulher, sendo inclusive, causa de aumento de pena do crime.